Este é o terceiro de uma série de cinco texto que Outras Palavras publicará nas próximas semanas. Leia os outros aqui

As condições em que se faz a reforma agrária no Brasil

O elemento central da análise é a constatação de que a correlação de forças entre os donos da terra e os que aspiram por ela sempre foi negativa para estes últimos. Os grandes proprietários de terra no Brasil foram por muitos séculos o eixo central das classes dominantes, controlando, junto com a propriedade de escravizados, os principais meios de produção e os poderes político, administrativo e judiciário. Mesmo quando o desenvolvimento econômico trouxe outros atores para compor a elite econômica, os latifundiários formaram relações com os setores industrial, comercial e financeiro e nunca perderam o protagonismo. Isto nunca foi tão visível como no momento presente, quando o Congresso tem uma forte maioria de parlamentares relacionados como “bancada ruralista”, de longe a mais importante na Câmara e no Senado.

Os anos pós-ditadura militar permitiram que a luta dos sem-terra polarizasse a política e surgisse como uma aparente ameaça ao monopólio da terra. Mas foi uma ilusão. Arrancou-se uma legislação que indicava uma mudança radical nesta correlação de forças, quando a Constituinte definiu o conceito de “uso social” da terra e a possibilidade de desapropriações com pagamentos em títulos da dívida pública. Mas tudo ficou dependendo de regulamentação e, na prática, nada mudou.

A aplicação da lei e a operação dos sucessivos programas de reforma agrária, desde Sarney até Lula III (40 anos de tentativas de descentralizar a posse da terra), mostraram que tudo se fez com entraves que, em grande parte, inviabilizaram o processo. Pode-se dizer que a reforma agrária no Brasil foi executada onde a linha de resistência do latifúndio foi mais fraca.

Para começar, nunca foi admitido qualquer limite para o tamanho da propriedade rural. O resultado foi o contínuo crescimento da área média e uma concentração de terras sem parelho em qualquer lugar do mundo. Com todos estes anos de distribuição de terras, o resultado, tal como registrado no censo agropecuário de 2017, é o número das propriedades com área superior a mil hectares somarem apenas 51.203 (1% do total de proprietários rurais) e ocuparem 167 milhões de hectares (48% do total). Mesmo entre estes superproprietários, a concentração também é grande. Os donos de mais de dez mil hectares são apenas 2.450 (0,05% deste grupo) e ocupam 51,6 milhões de hectares (31% da área do grupo).

Os números dos sucessivos censos mostram que este processo de concentração de terras nunca deixou de ocorrer, variando apenas na intensidade.

Outro indicativo do poderio do latifúndio no seu embate com os reformistas agrários é o fato de que a maior parte das terras distribuídas pelos sucessivos governos não foi objeto de desapropriação, mas de partilha de áreas públicas pertencentes à União. Outra parcela importante de terras “distribuídas” sequer poderia ser considerada como “reforma agrária”, por se tratar de casos de regularização de propriedades que já estavam na posse de agricultores familiares havia tempos.

Os casos de desapropriação foram quase todos o resultado de invasões organizadas pelos movimentos sociais do campo. Elas foram selecionadas criteriosamente por não se tratar de “áreas produtivas”. Na maior parte dos casos as ocupações se deram em latifúndios com amplas áreas sem uso agrícola ou pecuário, em geral degradadas por mal manejo. Existem cerca de 80 a 100 milhões de hectares nestas condições, mas isto nunca levou o Incra a desapropriá-los massivamente. Discussões sem fim sobre a definição de uso econômico do solo não levaram a qualquer ajuste dos indicadores definidos em 1988, totalmente superados pela evolução da tecnologia. Na verdade, o agronegócio não tem interesse nestas áreas e poderia até admitir a sua desapropriação, desde que fosse remunerado. Mas o embate político e ideológico sobre o direito sacrossanto à propriedade da terra empurra o conjunto dos proprietários rurais para a resposta negativa e agressiva às pretensões reformistas.

Os percalços da reforma agrária

Enquanto o processo de concentração de terras prossegue implacável ao longo da história do Brasil, vamos assistindo a sua contrapartida, a desaparição paulatina do campesinato.

Os números dos censos são pouco confiáveis e os do Incra pararam de ser divulgados desde 2015. Entretanto, é possível fazer algumas constatações. A mais importante e que merece discussão profunda, é o fato de que entre 2006 e 2017 desapareceram 468.859 unidades produtivas da agricultura familiar. No mesmo período, foram assentadas aproximadamente 500 mil famílias. No balanço entre famílias que se vão e famílias que chegam, concluímos que cerca de 970 mil famílias deixaram o campo.

Não há como saber quem são estes migrantes. Quantos são assentados da reforma agrária? Quantos são minifundistas? Quantos são originários de biomas vulneráveis como a semiárida Caatinga? Há apenas indicações com graus variados de consistência.

Estudos com base em dados do Incra até 2015 indicam que dos 1.178.891 lotes distribuídos, 207.103 (17,6%) estavam vagos. Quase metade destes abandonos se deram em áreas classificadas pelo Incra como “em consolidação” ou “consolidadas”. Quase um quarto estavam em áreas “em instalação” ou “em estruturação”, o que é mais compreensível, sobretudo quando se sabe que estes processos de instalação e estruturação estavam sujeitos a longos atrasos e percalços que desanimavam os assentados. Mas por que do abandono em áreas consolidadas?

Há outros indicadores de problemas nas áreas de assentamento, com quase metade dos lotes distribuídos até 2016 em situação irregular. É considerado em situação irregular um lote ocupado por outra família que não a documentada pelo Incra. Este lote pode ter sido vendido, arrendado ou cedido a outra família, mas tudo isso é irregular. Também é considerado irregular o lote “ocupado” por uma família não residente no mesmo município. Ainda estou para entender este último caso.

Os percalços dos assentados e o aparentemente alto número de fracassos e abandonos tem uma explicação que se relaciona com o fator indicado acima neste artigo: a reforma agrária se faz nas áreas de menor resistência do latifúndio. Isto quer dizer que são terras localizadas em biomas mais frágeis ou em regiões distantes e com solos mais degradados. Na maior parte dos casos os assentados foram deslocados para onde foi possível encontrar terras disponíveis. Isto representou graves problemas de adaptação dos conhecimentos agrícolas dos assentados para agroecossistemas mais ou menos distintos dos que conheciam. Foi o caso da maior parte dos assentados na região Norte, vindos do Nordeste ou mesmo do Sudeste e Centro Oeste.

Por outro lado, os sucessivos governos que executaram programas de reforma agrária gastaram o mínimo possível de seus orçamentos e isto significou, frequentemente, colocar mais famílias do que o indicado tecnicamente. Os já mencionados atrasos na estruturação dos assentamentos levaram muitas famílias a sobreviverem explorando madeira e carvão das áreas recebidas, deixando os lotes no bagaço. E, para completar, os planos de produção orientados pelo Incra e financiados pelo Pronaf, foram voltados para um modelo convencional, caro e arriscado e que gerou não poucos casos de inadimplência.

Um importante efeito negativo estratégico tem que ser apontado neste quadro de evolução da agricultura familiar e de fracasso da reforma agrária. Trata-se da erosão dos conhecimentos tradicionais das famílias camponesas. Isto vem se dando quer pelos deslocamentos regionais entres os assentados, quer pela evasão de agricultores, quer pela adoção de sistemas produtivos convencionais no lugar dos tradicionais, o que ocorre sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. Para terminar, uma grande parte do campesinato brasileiro é hoje composto por minifundistas com menos de 2 hectares de terra para cultivar, o que leva a rápido desgaste dos solos e sistemas produtivos muito vulneráveis, incapazes, no seu desenho atual, de prover o sustento de uma família.


  • Capa: Plantação de horta coletiva em acampamento do MST em Campos: produção de alimentos orgânicos com base na agroecologia / Foto: Pablo Vergara, MST

Fonte: por Jean Marc von der Weid, OUTRASPALAVRAS