Parentes de vítimas se organizam para questionar ações do governo durante crise sanitária – de maus protocolos nos hospitais a reabertura precoce que espalhou o vírus. O que sua luta tem a ensinar ao Brasil?
A Itália foi o primeiro país europeu e o segundo no mundo – depois da China – a declarar emergência diante da pandemia de covid-19. Desde fevereiro de 2020 até agora, o país com população de 59 milhões de habitantes conta mais de 180 mil mortes pela doença. Agora, grupos de familiares de vítimas pedem pela investigação das condutas do governo – e de médicos – durante a crise sanitária. A Itália tem números relativos de mortes muito semelhantes ao Brasil: por aqui, morremos 325,3 a cada 100 mil; no país europeu foram 320,5 por 100 mil.No segundo semestre de 2022, o governo italiano aprovou uma medida para indenizar parentes de profissionais da saúde que morreram enquanto trabalhavam na contenção da pandemia de covid-19. Em março deste ano, prazo máximo para a inscrição das famílias, o jornal La Repubblica noticiou que o governo recebeu menos pedidos do que o previsto. Em paralelo, criaram-se grupos compostos por familiares de vítimas – desde trabalhadores que não puderam parar até aposentados – que exigiam a investigação no interior dos hospitais onde seus parentes morreram. Além de acreditarem na culpa de membros do governo que ordenaram a implementação dos protocolos seguidos por hospitais e clínicas, como o então ministro da Saúde Roberto Speranza (Partido Democratico), esses grupos também apontam irregularidades cometidas por médicos responsáveis pelo atendimento de pacientes covid. O Comitato Nazionale Familiari Vittime Covid (“Comitato Nacional Familiares das Vítimas de Covid”) é um dos maiores entre os grupos. Ativo desde julho de 2022, é composto por pessoas de todo o país que perderam algum parente para a covid e compartilham suas histórias de luto através de grupos no Facebook, Whatsapp e Telegram. Só a página no Facebook já conta com mais de 3 mil seguidores. Ivana Costabile, advogada e vice-presidente do Comitato, perdeu o pai de 80 anos. Assim como ele, ela argumenta que muitas pessoas, inclusive jovens, foram até os hospitais bem e voltaram “em um caixão”. “Nos perguntamos se nossos parentes morreram por covid ou por protocolos errados”, explica. Isso porque, nesses grupos, começaram a ser relatados diálogos que os parentes tiveram com as vítimas durante sua internação, pouco antes dos óbitos. Muitos relataram as condições ruins dos hospitais, como a falta de oxigênio ou água, enquanto outros pediam para serem buscados. Por vezes o paciente foi intubado sem a família ser avisada. Após a morte, grande parte das famílias relatam que não puderam reconhecer o corpo de seus parentes, lacrados em sacos plásticos antes de serem encaminhados aos necrotérios. Para Ivana, muitas mortes poderiam ter sido evitadas se o protocolo investisse nas visitas e cuidados domésticos por parte de médicos da família, devidamente protegidos. Ela acredita que o isolamento completo dos doentes, somado ao medo, piorou seu estado de saúde. “Faltou assistência aos pacientes. As pessoas sabiam o que estavam passando e muitas sabiam que estavam morrendo”, conta. Os primeiros casos de contaminação local do coronavírus na Itália começaram em fevereiro de 2020, na região da Lombardia. A primeira cidade afetada foi Bergamo, a nordeste de Milão. Apesar dos alertas chineses, o então primeiro-ministro, Giuseppe Conte, adotou um discurso negacionista – que mudaria pouco depois, em março, quando o primeiro lockdown nacional foi decretado. Mas já era tarde. A falta de uma ação imediata naquele momento originou o inquérito de Bergamo, que concluiu que houve omissão por parte do governo federal e estadual diante do não-fechamento imediato da Lombardia – propício para a disseminação do vírus para outras regiões. A investigação também conferiu que o plano emergencial para pandemias do Estado italiano não era atualizado desde 2006. Por outro lado, os magistrados concluíram que não se trata de homicídio culposo múltiplo, como defendem alguns membros do Comitê. Muitos entraram com denúncias contra médicos e hospitais onde seus entes queridos foram internados, acusando-os de homicídio culposo – aquelas que chegaram à mídia, foram arquivadas. “De forma alguma se pode dizer que a epidemia foi causada por representantes do governo”, afirmaram, após a transferência do inquérito para Roma. “Estávamos todos no escuro nas duas primeiras semanas. É claro que hoje, com os conhecimentos que adquirimos, analisamos a situação de forma diferente”, declarou ao Corriere della Sera Matteo Bassetti, diretor da Clínica de Doenças Infecciosas do hospital San Martino, em Gênova. Ele se refere também às decisões tomadas por médicos durante a emergência. “Precisamos revisar os protocolos que levaram às escolhas, para que os erros não se repitam. Mas não faz sentido procurar culpados”, afirmou. Agora, o governo de Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia), primeira-ministra italiana de extrema-direita, decidiu pela abertura de uma comissão de inquérito parlamentar para investigar membros do governo anterior – composto pelo Partido Democratico e pelo Movimento 5 Estrelas – a respeito da gestão pandêmica. Nesta quarta-feira (12/4), o texto-base do inquérito foi aprovado no parlamento apenas pelo voto da bancada conservadora, visto que a oposição deixou a votação em protesto. O motivo: foi retirado do documento a indicação de prosseguir também com as investigações das administrações estaduais, para procurar possíveis erros de conduta em todos os níveis. A maioria dos governadores dos estados do norte eram, na época da pandemia, de partidos de direita. O governador de Bergamo era Attilio Fontana, da Lega, partido aliado ao de Meloni – também investigado no inquérito referente à cidade. A oposição acusa o atual governo de instrumentalizar a investigação politicamente a seu favor.
Relatos piores em regiões mais vulneráveis
No verão do hemisfério norte de 2020, o governo italiano permitiu o retorno de algumas atividades para movimentar a economia. Muitos italianos do norte viajaram ao sul, historicamente uma região mais vulnerável economicamente e socialmente, para passar as férias. “Nós não temos as tecnologias dos hospitais do norte ou os médicos com altíssima qualificação”, argumenta Ivana, que mora na Calábria. Segundo ela, ao tomar essa decisão, o governo ignorou as experiências traumáticas vividas nos hospitais do norte do país apenas alguns meses antes. “Eles não se preocuparam em criar novos leitos na região, comprar testes ou recrutar mais profissionais da saúde, para caso o vírus se espalhasse”, afirma. Em pouco tempo, o sul do país também vivia uma forte onda de internações.“Montaram tendas improvisadas nas ruas para receber os pacientes enquanto não vagavam lugares nos hospitais. Meu pai ficou três dias em uma maca, sem tomar remédios e sem oxigênio. Ele me ligava pedindo para que eu levasse água e cobertas. Era outubro, com temperatura de 11 graus”, narra Ivana. “Vivemos uma tragédia dentro de uma tragédia e sabemos que o Estado italiano não tinha os mecanismos adequados para enfrentar uma pandemia daquela dimensão. Vivemos uma desumanização médica. O total abandono dos doentes e de seus familiares”, prossegue a vice-presidente do Comitê. “Queremos uma comissão para entender quais foram os erros e quem são os responsáveis”, conclui.
- Capa: Giuseppe Lami, EPA