Governo Lula libera R$ 3,8 bilhões – o maior aporte para artes na história do país. Será preciso evitar que este enorme potencial seja engolido por burocracias. A saída: simplificar a gestão dos recursos e priorizar artistas; e sobretudo os jovens
Por Célio Turino, em Outras Palavras
A Lei Paulo Gustavo (LPG) é uma conquista da sociedade brasileira que vai muito além do ambiente da Cultura em sentido estrito. É o maior aporte em recursos diretos para as artes e a cultura da história do país, R$ 3,862 bilhões, e libera de uma única vez todos os recursos acumulados no Fundo Nacional de Cultura por mais de uma década de contingenciamentos. Antes, o maior aporte em uma única ação da Cultura foi a Lei Aldir Blanc (LAB), com R$ 3 bilhões, em contexto de pandemia; antes dessa, o programa Cultura Viva, com R$ 559 milhões, entre 2004 e 2010. A aplicação dos recursos da LPG é de natureza distinta da LAB, que foi emergencial. A LAB cumpriu sua função, havendo preservado entre 450 mil e 800 mil postos de trabalho na cadeia produtiva da cultura, a depender do estudo. Inegavelmente foi um êxito, que deu base à LPG, incluindo o fato de haver preservado os recursos do FNC, por utilizar o chamado “orçamento de guerra” no enfrentamento à pandemia. O Cultura Viva, que serviu de base conceitual e de método de mobilização pelo consenso progressivo para a LAB, teve natureza distinta de ambas, por mais processual e de base comunitária.Apresento os números e conceitos anteriores para que se tenha a dimensão do processo, da relevância, potencialidades e responsabilidades agora com a Lei Paulo Gustavo. Inicialmente a LPG deveria ter a mesma característica emergencial da LAB, mas com a má vontade do governo anterior e a demora na aprovação da lei, sua execução se dará em outro contexto, não mais de emergência, mas de retomada de ações perenes. Para além de atender situações de urgência e emergência, que a lei sirva para saltos qualitativos em política cultural, com a efetiva estruturação do Sistema Nacional de Cultura, estabilizando Conselhos democráticos nos estados e municípios, Planos de Cultura e Fundos. E que a política cultural resulte em saltos qualitativos na criação, produção e circulação artística e cultural no Brasil; que muita gente seja capacitada em artes e cultura, que muita gente crie, invente. Que o Brasil seja tomado pelo encantamento que só a Arte e a Cultura são capazes de promover!De norte a sul, nos rincões mais esquecidos, nas temáticas mais olvidadas. Que a aplicação da lei seja inclusiva e generosa. Cabem as culturas tradicionais e as artes experimentais, as artes de rua e as de câmera, a música popular (todas elas), os slams e as óperas, a música sinfônica. Os filmes, os documentários, as ficções, os curtas, os médias, os longas, as séries, os podcasts; os produtos que estão para serem complementados e concluídos e os que estão para serem criados. Os jovens e iniciantes e os veteranos e consagrados (importante atentar para não os colocar em uma mesma seleção, pois os critérios são diferentes). Tudo e todas, e todes, e todos, cabem. Cabem porque a Cultura cabe em tudo e em todas. A Cultura, assim como a Arte, são substantivas femininas, por isso a concordância no feminino, por inclusiva.Passando pelo preâmbulo, vamos à operação. Aqui tomo a liberdade de apresentar algumas sugestões, exemplos e alertas. A elas:- Os recursos da LPG têm aplicação distinta, por fontes distintas. A maior parte (R$ 2,797 bilhões) com origem no Condecine, devendo ser revertida exclusivamente no Audiovisual, via FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Bom que a regulamentação não alterou esse entendimento, nem poderia fazê-lo; observo apenas que, como essa questão estava clara desde o início, deveria ter sido colocada com mais ênfase nas incontáveis audiências, isso teria evitado muita cizânia e disputas indevidas. É um recurso arrecadado pela cadeia produtiva do audiovisual e é justo que seja aplicado nela. Até porque o audiovisual emprega gente em todas as áreas. A dança pode ser contemplada por essa origem de recurso? Pode, via uma proposta de videodança, assim como atores e atrizes são contratados pelo audiovisual, escritores e roteiristas, cenotécnicos, músicos… O necessário é que a proposta venha da cadeia produtiva do audiovisual, não se esqueçam disso. Também não se deve esquecer que fazer audiovisual é caro (porque tem características industriais e envolve muita gente), logo é bom evitar pulverizar por demais os recursos. Em havendo propostas inclusivas e generosas, muita gente vai se beneficiar e trabalhar junto, mesmo sendo apenas uma única película, que hoje são digitais. Também não esquecer dos jovens e iniciantes, e abrir chamadas específicas para eles.
- Para as demais áreas culturais o valor total é de R$ 1,065 bilhão. Isso representa um terço do que foi a Lei Aldir Blanc. Aqui percebo um problema: haverá muita frustração. Ou os recursos serão muito pulverizados e pouco expressivos em valor unitário, ou haverá muito menos contemplados que na LAB, que já deixou muita gente de fora, como sabemos. Como resolver? Lanço um apelo ao MinC, que a regulamentação da Lei Aldir Blanc 2 aconteça com a maior brevidade possível, se possível até meados de junho. Com isso serão agregados mais R$ 3 bilhões e será possível contemplar a cultura de forma mais abrangente. É um equívoco pensar que a aplicação concomitante das duas leis é de difícil execução. Ao contrário, é um facilitador. Evita-se retrabalho e cada lei poderá se concentrar em determinados setores e temáticas. Ainda há tempo para que isso aconteça, do contrário, nesse ritmo lento, a LAB2 só será executada (no sentido de chegar na ponta) no ano que vem. Creio que ninguém quer isso, até porque a cultura e as artes urgem.
- Sobre aplicação na ponta. Considero fundamental simplificar. Vamos evitar editais complexos, sobretudo na exigência de documentação que o governo já dispõe. Não faz sentido exigir certidões que são emitidas pelo próprio governo, o trabalho para o proponente colocar todas as certidões é enorme e desnecessário. Avisa-se da necessidade das certidões e quando do pagamento dos prêmios, bolsas, ou o que seja, o próprio governo puxa as certidões, em percebendo algum problema, notifica-se o contemplado e se dá um tempo para que ele resolva. Quando dos Pontos de Cultura, selecionávamos assim: primeiro avaliávamos o mérito das propostas, o conteúdo, os sonhos, para só depois analisar documentação burocrática (em editais, até hoje, o que ocorre é o contrário, com isso milhares de projetos são descartados sem ao menos terem a sua ideia lida por algum avaliador – algo bem cruel, vocês não acham?); lembro que àquela época (2004) muito documento só era acessado em papel e nada interligado, hoje será bem mais fácil e ágil. Tenham certeza que irão poupar milhares de horas de trabalho de milhares de fazedores da cultura. Além da satisfação de poderem ajudar lindos sonhos a se tornarem realidade, que de outra maneira seriam descartados sem ao menos serem lidos.
- Ainda na simplificação. Caminhemos para a universalização (quem faz cultura e arte de forma reconhecida e continuada tem que ter acesso a recursos sem a necessidade de concorrência e disputa entre iguais). É possível! Esse princípio esteve inserido, mas infelizmente não foi aplicado, na LAB. Vamos colocá-lo em prática agora, ao menos em parte, onde for possível. Vou dar alguns exemplos bem singelos: artesãs e violeiros. A prefeitura pode contratar um curso para inserção produtiva em economia solidária (de preferência com recurso próprio, sem utilizar a verba da LPG, assim sobra mais para as artesãs) e chamar artesãs e artesãos para se inscreverem no curso, todos inscritos receberão um valor (vamos chamar de bolsa) para investirem em seus negócios. E se houver mais inscritos que recursos, a prefeitura bem que pode completar, afinal, é para investimentos produtivos na própria cidade, vale a pena cuidar da nossa gente. Ou um projeto “Viola na Praça”, todos os violeiros da cidade se inscrevem para se apresentarem alternadamente, aos finais de semana, no coreto da cidade (de preferência com a prefeitura pagando som e apresentador, palco, com recursos próprios, conhecemos bem, quase todas têm esse tipo de contrato), e os violeiros recebem por suas apresentações. Pode ser também com slam, ou audições de violino, ou apresentações de dança, teatro infantil em circuito com escolas, o que seja. A forma de edital é marcar uma data para que apresentem o que sabem fazer, cara a cara, sem papelada ou burocracia, bastando uma apresentação simples. E assim se atende todo mundo, de forma colaborativa e sem disputa. Que tal?
- Isso significa que não deva haver edital concorrencial? De forma alguma, os recursos são limitados e há que haver algum processo de seleção. Mas que isso aconteça apenas em determinadas categorias de projetos, mormente aquelas mais complexas e que envolvam profissionais mais experimentados. Importante que sejam contemplados. Assim como é necessário que jovens e iniciantes concorram em editais específicos, com critérios e valores adequados à iniciação. Outros à consolidação de passos seguintes. Uma boa ideia que vi dia desses sendo aplicada na cidade de Maringá, recentemente, foi o lançamento de um edital único, multilinguagens e multissetorial; pode ser um bom caminho para uma maior flexibilidade e justiça nas escolhas.
- Uma última sugestão. Procurar soluções que contemplem ao menos 30% dos inscritos. Defendo essa ideia porque a apliquei quando estava como secretário da Cidadania Cultural no MinC, há quase 20 anos, e afirmo que é bem viável. Vamos evitar editais em que se contemplam apenas dez pessoas em meio a centenas de inscritos. Para os editais da Cultura Viva, eu e mais um assessor com boa formação em matemática (o Antônio Brito), fazíamos uma equação prévia, assegurando a distribuição de recursos de forma mais democrática e equilibrada. Utilizávamos três fatores (população, IDH e projetos enviados por região ou temática) com ponderação diferente para cada fator. Com isso, regiões com menor IDH, em zonas de fronteira, povos indígenas, quilombolas, recebiam, proporcionalmente à população um per capita maior que em regiões mais ricas do país. São Paulo, por exemplo, apesar de ter 23% da população nacional, nunca teve mais que 18% de Pontos de Cultura. Garantíamos equidade e justiça na distribuição de Pontos de Cultura e prêmios nas ações da Cultura Viva. Quando da lei Aldir Blanc levei em conta essa experiência para sugerir uma equação mais simples, a fórmula 80/20, que foi aplicada tanto na LAB como na LPG, definindo previamente quanto cada estado e município recebe do montante total. A depender, a equação pode incorporar outros fatores, como regiões de relevante interesse cultural, patrimônio histórico, ambiental, zonas de alta vulnerabilidade e exclusão (mas, é bom lembrar, a cada novo fator a equação fica mais complexa, sendo necessária uma boa ponderação a cada fator). Ah sim, é bom sempre ter em conta a Diversidade Complementar, não somente a diversidade, mas aquela que se complementa e que ao ser contemplada enriquece o conjunto da rede, por exemplo: Cinema e fotografia para portadores de deficiências visuais, Música para deficientes auditivos, Síndrome de Down, Autistas… Por vezes são projetos únicos, mas que, ao entrarem na rede, ensinam a todos os demais.
- Capa: Apresentação do Bando de Teatro Olodum