Preparações para as Conferências de Saúde começam a movimentar os debates sobre o SUS que o Brasil precisa. Em São Paulo, uma manifestação reuniu representantes dos movimentos para questionar a relação promíscua entre Estado e iniciativa privada
Foi comemorado em 5 de abril mais um Dia Mundial da Saúde, data que também marca a fundação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Pelo Brasil, sindicatos e movimentos populares da saúde fizeram algumas manifestações, o que também significou uma espécie de aquecimento para a 17ª Conferência Nacional de Saúde, a ser realizada entre 2 e 5 de julho em Brasília. Até lá, centenas de encontros marcarão as etapas municipais e estaduais da Conferência.“O Dia Mundial da Saúde serve para resgatar a noção de que se trata de um direito à vida, muito mais do que à assistência em si. De fato, é um momento propício à reconstrução do SUS sob bases de participação. As conferências servem para demarcar qual o SUS queremos e como faremos esse SUS. E é claro que o financiamento é fundamental. Não é um momento fácil porque não se faz todas essas políticas sem passar pelo Congresso, tanto o nacional como as assembleias legislativas estaduais”, afirmou Cláudia Afonso, que trabalha em uma superintendência do ministério da Saúde em São Paulo, entrevistada pelo Outra Saúde.Claudia esteve na manifestação realizada no centro de São Paulo, em frente à Secretaria Municipal de Saúde, ao lado de movimentos populares de usuários do SUS, sindicatos e profissionais do setor. A privatização do SUS foi tema central do ato, até porque a cidade de São Paulo e seu modelo de transferência da gestão de serviços públicos de saúde às chamadas Organizações Sociais são a grande vitrine nacional da privatização do setor.“Viemos relembrar aqueles que se foram, não só os trabalhadores, mas os cidadãos. E começamos a nossa luta na defesa do SUS, principalmente a luta pela reestatização do SUS, porque o SUS privatizado, terceirizado, não é SUS, é alguma outra coisa que a gente não conseguiu nominar, pois não consegue realizar suas finalidades”, explicou Flavia Anunciação, do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep).Nesse sentido, a cidade mais rica do país oferece uma boa fotografia da realidade da “eficiência” da iniciativa privada. E, como contam esses trabalhadores, do autoritarismo de gestores orientados pela lógica neoliberal, que em linhas gerais se recusam a ouvir aqueles que trabalham na ponta do serviço, menos ainda seus usuários. A recente greve do metrô em SP, onde o governador Tarcísio Gomes apareceu em público ofendendo trabalhadores e defendendo as concessionárias de serviços sobre trilhos ao lado de seus diretores, num contexto onde os acidentes nas linhas privatizadas se acumulam, é demonstrativo do nível de promiscuidade público-privada. Obviamente, e como já demonstrou o Outra Saúde, corrupção e desvio de finalidade são corriqueiras nesta relação.“Recentemente, estivemos no Ministério Público, que está tentando estabelecer alguma fiscalização. Entre 2016 e 2020, são R$ 7 bilhões de saldo bancário dessas OS. Isso consta como política pública não executada, sem obrigação de devolução. Isso porque a OS recebe antecipadamente por 100% de sua chamada produção em saúde. E se a OS executa até 85%, não sofre nenhuma penalidade, nenhuma sanção e não é obrigada a devolver os valores. Ou seja, faz caixa. Neste período, por exemplo, 200 mil mulheres deixaram de ter acesso à ginecologia. As Equipes de Saúde da Família (ESF) estão desfalcadas, muitas OS não conseguem compor a equipe mínima e vão tocando com trabalhadores terceirizados. Aí a gente ouve do secretário de saúde que a OS é boa, veio pra ficar, não tem debate”, criticou Flavia Anunciação.Dessa forma, não é à toa que movimentos de usuários de SUS de locais como Parelheiros e São Mateus desejam o fim das OS. “Falta mão de obra, a questão da contratação dos médicos é exemplo, mesmo quando contratado não fica na unidade por muito tempo, a equipe esvazia, o serviço acaba feito por outro profissional sem as mesmas credenciais do médico. A gente até agradece esse profissional que dá o melhor de si na ponta do serviço, mas acontece que deveria ter o médico de cada Equipe de Saúde da Família. Tem unidade com dois médicos para seis equipes. As OS não resolvem isso”, contou Cícero Rodrigues, do Movimento de Saúde de Parelheiros e Marsilac, extremo sul da capital paulista.“As OS representam a imposição de um Estado mínimo de direito”, resume Cícero. “Não tem nada a ver com levar saúde, é muito mais uma lógica empresarial”, completa Flávia.
Apesar da vitória de Lula e da ascensão de Nísia Trindade Lima ao ministério, a cultura de Estado mínimo segue a cercar a classe política brasileira, que por sua vez tem feito da saúde um ativo político pessoal. “Também precisamos começar a fazer uma discussão das emendas parlamentares. Não podem ser recursos soltos sem uma ideia de conjunto. Não dá pra pensar no sentido eleitoral, na minha emenda pra conversar com meus eleitores”, lembrou Claudia Afonso.No plano federal, houve a criação da ADAPS, uma espécie de autarquia independente do ministério, como mecanismo de privatização do SUS e manejo de verbas por fora das restrições fiscalistas. Como assumido pelo governo federal no anúncio da retomada do Mais Médicos, são 5.000 mil Equipes de Saúde da Família carentes de médicos. “A ineficiência da lógica privatista já está comprovada. O Estado vai ter de repensar isso. Nós vamos ter que discutir sobre bases de dados. Nós temos de falar concretamente sobre o problema do financiamento da saúde”, completou Cláudia.Mesmo com a vitória representada na aprovação da PEC de Transição, que garantiu bases mínimas para financiamento da política de saúde, o debate em torno do maior financiamento e expansão do SUS está apenas no começo. A Conferência Nacional, sem dúvidas, será um momento de demonstração de força do movimento pela saúde pública.
- Capa: Gabriel Brito*