Enquanto governo federal promove políticas destinadas a incluir os mais vulneráveis, em pleno inverno, cidades como São Paulo e Belo Horizonte aumentam as dificuldades de proteção
A extrema pobreza jogou para as ruas do país mais de 281 mil pessoas que não tem aonde morar e o que comer. Somente durante o governo do ex-presidente, hoje inelegível, Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022, a população em situação de rua no país cresceu 38% segundo apuração do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).Diante de um cenário em que crianças e adultos estão à mercê da própria sorte, autoridades públicas que deveriam socorrer essa população vão no sentido contrário e promovem a implementação de medidas que não resolvem o problema. Pior, buscam expulsar das cidades quem é vítima das desigualdades sociais.Dois exemplos recentes de descaso com os mais pobres vêm das capitais São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG). que em pleno rigor do inverno. decidiram aumentar a repressão, retirando objetos, cobertores e até documentos dessa população, que encontra dificuldade de se abrigar com a arquitetura hostil das grandes cidades com cada vez mais grades, muros e obstáculos atémesmo sob os viadutos.O frio intenso em Belo Horizonte chegou a atingir no dia 3 de julho a mais baixa temperatura do ano, 9,9°C. Com o acréscimo de rajadas de vento, a sensação térmica foi -9,6°C na madrugada. Mas a realidade difícil não foi o suficiente para comover os vereadores da Câmara Municipal da capital mineira, que aprovaram em primeiro turno o Projeto de Lei (PL) 340/2022 dois dias depois deste frio intenso (dia 5/7) a Política Municipal Intersetorial para Atendimento à População em Situação de Rua.A proposta dos vereadores Braulio Lara (Novo), Gilson Guimarães (Rede), Henrique Braga (PSDB) e Wesley Moreira (PP) determina o confisco de pertences de que viva de forma permanente em ruas e calçadas da cidade.Diante do retrocesso, um abaixo-assinado com mais de 8 mil assinaturas convoca a população a lutar para barrar o PL que “atenta contra a dignidade das pessoas”, conforme aponta o texto anexo ao manifesto.O documento aponta vários problemas que deveriam ser prioridade para a Câmara de Vereadores, como discutir a ampliação da capacidade de acolhida dos espaços voltados à população em situação de rua, melhorar os serviços de abordagem social e expandir o investimento em consultórios de rua, atualmente fragilizados.De acordo com números divulgados pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, divulgados em agosto de 2022, a capital mineira é que tem maior proporção de pessoas em situação de vulnerabilidade entre todas as capitais do Sudeste. A cada 100 mil habitantes, 340 viviam nas ruas, número inferior apenas à Boa Vista (RR). A maior parte dessas pessoas, 82,6%, é formada por pardos e pretos.A Secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT Nacional, Jandyra Uehara, ressalta que a entidade defende propostas que tenham a dignidade e a inclusão como base.
Projetos como esse violam os direitos humanos e são um ataque brutal contra essa população que já sofre com um processo de desumanização. O que precisamos para atender aqueles e aquelas que a situação do país empurrou para as ruas é ter uma política de teto, trabalho e tratamento no caso de usuários de drogas que necessitam. Essa é a política que defendemos, não de segregação e da violênciaPara o membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, o projeto é um atentado à humanidade.“O problema da população de rua é da sociedade, não de quem está na rua e precisamos pensar políticas de inclusão social, de recuperação da população, de garantir emprego, não de repressão. Essa lei é anticonstitucional, discriminatória e não resolve o problema nenhum”, disse.HumilhaçãoEm São Paulo os moradores em situação de Rua passam pela mesma humilhação promovida pela prefeitura com apoio de alguns setores. No final de maio, o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ribeiro de Paula derrubou a liminar que impedia a prefeitura de fazer a retirada de barracas das pessoas em situação de rua durante o dia.A ação estava suspensa desde fevereiro, após ação popular que tem como autores nomes como o atual deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) e o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo.Mesmo com a nova interpretação jurídica, de acordo com um decreto de 2020, os fiscais da subprefeitura da Sé, que cuidam das ações de zeladoria do centro da capital paulista, só poderiam retirar objetos que caracterizassem estabelecimento permanente em local público, como camas, sofás, colchões e barracas montadas.Porém, muitas das pessoas abordadas pela fiscalização denunciam que até mesmo documentos pessoais, cartões, receitas médicas e cobertores são apreendidos em uma política de opressão e exclusão capitaneada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), que definiu a decisão da justiça com a ideia de que “rua não é endereço, barraca não é lar"À época, o padre Júlio Lancellotti, classificou a medida como a legalização da covardia e da violência. “A Prefeitura de São Paulo, sem oferecer nenhuma alternativa de moradia com autonomia e dignidade, ainda toma as barracas onde o povo de rua mora", pontuou.São Paulo tinha oficialmente 31.884 pessoas em situação de rua no início de 2022, conforme senso realizado pela empresa Qualitest contratada pela prefeitura. Mas organizações como o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) e a Rede Rua questionam a metodologia e apontam para ao menos 45 mil pessoas sobrevivem nas calçadas paulistanas.ChoqueAs medidas higienistas dificultam a efetivação de políticas públicas como o programa "Minha Casa, Minha Vida", remodelado pelo governo Lula (PT) para atender também pessoas em situação de rua.Com as alterações, a iniciativa apresentou juros menores para financiamento das rendas mais baixas e subsídios de até 95% do valor do imóvel. Além disso, está prevista a criação de um aluguel financiado pelo programa para famílias que não conseguem pagar prestações e as populações em vulnerabilidade têm prioridade no acesso à proposta, com 50% dos recursos voltados às faixas de renda mais baixa. O objetivo, segundo o governo federal, é construir 2 milhões de habitações voltadas a esse grupo em três anos.As medidas são fundamentais para garantir dignidade e combater o déficit de residências estimado em 5,9 milhões pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2019.Os dados do Censo de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) apontaram também que há 11 milhões de casas vazias no país.Para Jandyra, combater essa situação passar por reverter a naturalização do sofrimento, um dos pilares do neoliberalismo.“Temos de atuar em duas frentes, uma que garanta condições de acolhida, espaços para descanso, oferta de alimento e higiene, além de políticas para o trabalho cooperativo e solidário, e outra que impeça o conformismo diante da miséria, do sofrimento e da dor dos outro. Os valores de solidariedade têm de ser trabalhados dia a dia pelos movimentos sindical e populares como forma de combater as ideias individualistas que o neoliberalismo impôs e manter vivo um olhar de indignação e de vontade de mudar”, concluiu.
- Capa: Roberto Parizotti
- Edição: Rosely Rocha