Mesmo com área reduzida, pouco crédito e dificuldades de escoamento, agricultura familiar domina a produção de verduras e legumes, além de alimentos como mandioca e batata-doce
Por Raquel Torres, especial para O Joio e O Trigo e De Olho nos Ruralistas [caption id="" align="alignright" width="495"]

CENSO DE 2006 MOSTRAVA FORÇA DA AGRICULTURA FAMILIAR
Saber exatamente o quanto da nossa alimentação vem da agricultura familiar é, hoje, virtualmente impossível. Para isso, seria preciso conhecer não apenas a quantidade consumida anualmente de cada alimento (um dado que não existe), como também o quanto de cada ingrediente é consumido – e ainda a produção agropecuária necessária para fazer esses ingredientes. Por exemplo: quanto de cana é necessário para fazer o açúcar de um pacote de biscoito, quanto trigo se precisa para fazer um pão francês, quanto leite se usa para fazer o requeijão. Isso sem falar que teríamos que colocar na conta todos os alimentos que o país exporta e importa.
EM DEZ ANOS, PARTICIPAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR CAIU
Onze anos depois, a divulgação do Censo Agropecuário 2017 veio com uma surpresa: houve queda de 9,5% no número de estabelecimentos de agricultura familiar, além de uma redução de 2,2 milhões de postos de trabalho nessa categoria. Embora continuassem fortes na horticultura, os estabelecimentos familiares perderam muito do seu papel na produção de alimentos como arroz em casca (de 33% para 11%), feijão preto (de 76% para 42%), mandioca (de 83% para 70%) e batata-inglesa (de 31% para 12%).

NOVOS CRITÉRIOS AFETARAM OS NÚMEROS DO CENSO
Uma das questões, de acordo com Mitidiero, tem a ver com a própria definição de agricultura familiar. A lei que trata disso é de 2006 e sofreu mudanças em 2017 e 2021. O texto diz que, para ser considerado como familiar, o agricultor precisa ter uma área de no máximo 4 módulos fiscais (sendo que o módulo fiscal varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município); utilizar predominantemente mão-de-obra familiar; ter a maior parte da renda familiar originada de atividades vinculadas ao estabelecimento; e dirigir o estabelecimento com a própria família. Alguns grupos não precisam obedecer ao critério de área máxima: extrativistas, pescadores, povos indígenas e quilombolas podem ocupar áreas com mais de quatro módulos fiscais e seguir classificados como agricultores familiares.
PESQUISADOR APONTA O REAL PAPEL DOS PEQUENOS AGRICULTORES
Mitidiero considera mais interessante avaliar a produção agropecuária brasileira de acordo com os estratos de área em que ela ocorre, em vez de usar a classificação agricultura familiar versus não-familiar.O pesquisador escreveu um livro sobre o Censo 2017 trabalhando os dados a partir desse enfoque. E concluiu que os estabelecimentos com menos de 200 hectares – que ele considera pequenos – são responsáveis por uma parte enorme da nossa alimentação. Eles produziram, por exemplo, 61% do feijão preto, 83% da mandioca, 85% do abacaxi, 82% da banana e 65% do café arábica, além de ter 39% das cabeças de gado e produzir 83% do leite de vaca.“Isso é de assustar porque, no imaginário nacional, o grande fazendeiro – o ‘Rei do Gado’ – é quem produz a carne do Brasil”, aponta. “Mentira. A boiada sempre esteve mais nos pequenos estabelecimentos”.Mitidiero acredita que há limitações em considerar pequenos os estabelecimentos com até 200 hectares, pois a mesma área pode significar uma terra pequena em um município, mas grande em outro. “E é possível ter um agricultor patronal, um capitalista super tecnificado, produzindo em 40, 50 hectares”, reconhece.Isso acontece porque as terras no Brasil são classificadas de acordo com módulos fiscais. Um módulo fiscal é a área mínima necessária para que um estabelecimento rural seja economicamente viável. Então, o seu tamanho varia de acordo com fatores que afetam a capacidade de produção – como a disponibilidade de recursos naturais, infraestrutura e dinâmica de mercado. Municípios com menor acesso a essas condições demandam áreas maiores para obter rentabilidade, então, neles, o módulo fiscal é maior.
PARTICIPAÇÃO DE GRANDES ESTABELECIMENTOS CRESCEU
Na outra ponta, os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares ocupam quase metade da área total (48%), mas não produzem alimentos nessa mesma proporção. O carro-chefe é a cana-de-açúcar (83%), que sequer se converte toda em alimento para o Brasil: boa parte vira etanol e boa parte é exportada. Também se destacam produtos como soja (60%) e milho em grão (58%), além de alimentos que o Brasil exporta muito, como melão (47%) e laranja (42%).Eles também geram uma parcela importante de alimentos que, de fato, ficam no país e fazem parte da nossa cultura alimentar. A participação na produção do arroz subiu de 30% para 49%. No caso do feijão preto, houve um salto de 3% para 15%; na de feijão de cor, de 20% para 53%. Ficaram mais relevantes na batata-inglesa (de 28% para 35%); ervilha em grão (de 16% para 54%); trigo (20% para 28%); e cenoura (de 0,25% para 26%).Encarar esses números de frente não significa minimizar a importância e a produtividade da agricultura familiar e dos pequenos estabelecimentos. Pelo contrário: é preciso reconhecer que eles produzem muito com pouca área e poucos recursos, mas que poderiam nos alimentar muito mais (e melhor) se estivessem no centro das políticas públicas de produção e abastecimento.
PEQUENOS AGRICULTORES TÊM DIFICULDADE EM ACESSAR CRÉDITO
Vários fatores ajudam a explicar por que os estabelecimentos menores e familiares têm uma grande produção de horticultura, mas não possuem o mesmo volume em grãos como arroz ou trigo.O primeiro, mais elementar, é a extensão das suas terras. Quase 40% dos estabelecimentos agropecuários no Brasil têm menos de cinco hectares. Cerca de 12% não chegam nem mesmo a um hectare.

“VAI DAR UM CAOS SOCIAL”
Ainda que a agricultura familiar não tenha, de fato, encolhido tanto entre 2006 e 2017 quanto os dados dos Censos sugerem, é razoável pensar que ela possa, de fato, vir a minguar. Isso porque a agricultura é um trabalho extenuante, arriscado e pouco valorizado. “Férias” é um termo que não faz parte do vocabulário da maioria dos agricultores familiares, a não ser quando problemas de saúde relacionados ao próprio trabalho levam a uma folga forçada.

PESQUISADORES APONTAM NECESSIDADE DE MUDANÇA
De um lado, agricultores familiares cansados, desvalorizados, sem políticas públicas que lhes ofereçam apoio adequado, e com filhos que buscam novos horizontes. De outro, dados do Censo mostrando que grandes estabelecimentos estão produzindo fatias maiores de alimentos como arroz, feijão e batata. Então, por que os agricultores familiares não podem mudar para atividades mais rentáveis e deixar que os grandes estabelecimentos e a agricultura patronal se responsabilizem por alimentar a população?Para Mitidiero, uma razão central é a desconcentração de renda. “Uma coisa é ter vários agricultores familiares produzindo milho. Outra é ter dez grandes produtores plantando milho e concentrando renda”, diz.Goldfarb chama a atenção também para o fato de que grandes produtores não geram realmente desenvolvimento local. Em municípios onde há assentamentos de reforma agrária, por exemplo, se percebe que o comércio local é dinâmico – com lojas de materiais de construção e de roupas, farmácias, mercadinhos e restaurantes –, e há incremento no setor de serviços. Isso sem falar, claro, na maior oferta de alimentos saudáveis para a população.A pesquisadora dá um contra-exemplo que condiz com a experiência de cobertura de O Joio e o Trigo revelada na série “No coração do agro”. “Vá ao Mato Grosso ver o que são cidades como Sinop. Tem aquelas lojas que vendem trator e veneno, e as ruas que não têm mais nada. Não tem vida naquelas cidades”. Ela vai além, lembrando que o avanço da fronteira agrícola para dentro de reservas florestais e territórios ocupados por populações tradicionais gera conflitos sociais e impactos ambientais.Mesmo que possa produzir alimentos, o objetivo maior do agronegócio não é realmente colocar comida no prato. O setor orienta sua produção para onde há mais dinheiro.Não é por acaso que, nos últimos anos, vimos o Brasil bater recordes de exportação de produtos agropecuários enquanto a fome aumentava no país. “Um dos mais fundamentais papéis que o Estado pode ter é o de se organizar para ter comida para a sua população. Então, a política agrícola é uma política de Estado. Tem que ser”, conclui Mitidiero.- Capa: Projeto Brasil Sem Veneno mapeia impactos dos agrotóxicos em todo o país | Foto: Denise Matsumoto