SUMAÚMA visitou os povos originários do território Ibirama-Laklãnõ, centro da ação julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Vítimas do extermínio há séculos, mais uma vez a violência ameaça os pequenos indígenas
Por ÂNGELA BASTOS, em Sumaúma
Isabel Cutschó, 77 anos, uma das anciãs Xokleng, traz no rosto as marcas da luta do seu povo. As cicatrizes da perseguição histórica – simbolizada em matanças a tiros e no fio do facão com que os bugreiros, como eram chamados os milicianos da época, ganhavam dinheiro do Estado por orelhas decepadas de indígenas – marcam também os pés calejados de Isabel. Ela vive na aldeia Sede, a 20 quilômetros do centro da cidade de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina, Sul do Brasil. Sentada em um banco de madeira, Isabel mostra peças do artesanato que produz em forma de brincos, prendedores de cabelo, colares e pulseiras coloridas. Enquanto faz isso, a anciã relata não ter ideia das vezes em que deixou a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ para participar, em Brasília ou em Florianópolis, a capital catarinense, de longas reuniões e protestos barulhentos. Em 2021, ela dançou com os pés descalços num dos salões do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, em sinal de protesto. “Não é que queremos terra, nós queremos a nossa terra de volta”, corrige Isabel, casada com um ex-cacique do clã Patté, com quem teve sete filhas e se tornou avó de muitos netos. É com parte da família que ela estará mais uma vez na capital federal, 1.700 quilômetros distante, para acompanhar o que os indígenas consideram o “julgamento do século”.Assim como seus parentes, Isabel aguarda, aflita, o dia 7 de junho, quando será retomado o julgamento no STF de uma ação que vai definir o futuro da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. Esse julgamento vai decidir se pode ou não ser aplicado na demarcação de terras do povo de Isabel e dos territórios indígenas de todo o Brasil o chamado “marco temporal” – tese que reduz os direitos dos povos originários ao determinar que só podem viver em suas terras ancestrais aqueles que as ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. A determinação de um marco temporal para o reconhecimento dos direitos ancestrais dos povos originários ignora que muitos foram expulsos de suas terras por grileiros ou projetos de Estado ou obrigados a fugir para não morrer.A trajetória de lutas do povo Xokleng atravessa gerações. Ela se reflete nas cicatrizes de Isabel e também no abraço de Sofhya Koziklã Teiê Priprá, de 5 anos, a um pé de canela-sassafrás nascido nos fundos da Escola de Ensino Infantil e Ensino Fundamental Vanhecu Patté, na aldeia Bugio. A espécie foi abundante na região, mas desde o início dos anos 1990, de tão explorada pela construção civil, entrou para a lista oficial de Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção. Além de ser uma madeira “nobre”, a sassafrás demonstrou outra qualidade que fez crescer o olho das empresas madeireiras: a imensa capacidade de produção do óleo essencial safrol, utilizado na fabricação de produtos medicinais e cosméticos. A árvore dá nome à Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, criada em 1977, com uma área de 5.229 hectares, dividida em duas glebas, nos municípios de Benedito Novo e Doutor Pedrinho.A luta por esse território vem desde os anos 1990. Os Xokleng sempre defenderam que a terra era deles, mas na época as lideranças não tinham clareza de como agir. O caso em discussão no STF, cujo julgamento será retomado agora, teve início em 2009 com uma ação de reintegração de posse movida pela então Fundação do Meio Ambiente (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). A área reivindicada pelos Xokleng é sobreposta à da reserva e já identificada como parte da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. A linha de demarcação do território começou a ser desenhada, mas o estado de Santa Catarina entrou com o pedido de reintegração de posse. Desde 2013, o traçado encontra-se paralisado.Em 2019, as coisas pareciam caminhar para um entendimento com uma audiência pública de conciliação no Supremo mediada pelo ministro Edson Fachin. Não houve acordo, porém. A votação agora está empatada, com voto contrário do relator Fachin aos pedidos do governo de Santa Catarina e favorável do ministro Kassio Nunes Marques, escolhido pelo extremista de direita Jair Bolsonaro quando era presidente.O abraço de Sofhya na árvore, que leva anos para crescer e pode chegar a 25 metros de altura, carrega uma esperança que extrapola os limites territoriais dos Xokleng. Isso porque, em 2019, o Supremo deu status de repercussão geral ao processo, o que significa que a decisão que for tomada nesse julgamento servirá como diretriz para todas as instâncias da Justiça com relação à demarcação de terras indígenas no Brasil.Gente do sol
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‘Quero ficar aqui até a terra me comer’
Rosinei Pedroso, 47 anos, a Rose, é a cozinheira de um acampamento às margens da estrada que faz divisa com a antiga sede da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás. A indígena Kaingang é casada com o Xokleng Ndili Kopakã, que junto com outros homens trabalha no corte de pínus nos matos da região. Já são quase sete anos morando com filhas e netos em barraca de lona. A proximidade com terras em conflito tem um preço alto: algumas vezes suas panelas, louças e roupas foram jogadas ao chão. Pelo menos em uma delas teriam sido policiais. “Eu não tenho medo de mais nada. Não acho que esteja fazendo algo errado, a não ser lutar. Eu quero ficar aqui até a terra me comer”, diz Rose enquanto se esquenta ao redor do fogão a lenha tomando um chimarrão.Por dez anos Natan Cuzon Crendo, 33 anos, foi operador de máquinas em uma das maiores fabricantes de produtos de cama, mesa e banho do polo têxtil do Vale do Itajaí. Como a maioria dos jovens, ele partiu em busca de emprego. Mas voltou para a aldeia Bugio, onde mora com a mulher, grávida do segundo filho. Conta ter sido movido por um sentimento comum a outros que partiram e retornaram: “Eu não posso deixar morrer o legado dos meus antepassados: eu acompanhei minha mãe acampada na Barragem Norte, uma obra que só fez mal ao nosso povo, onde ela adoeceu e morreu. Meu filho tem 1 ano, e sempre que pego ele no colo me vem à cabeça o sofrimento da nossa gente”.A Bugio, diferentemente das outras aldeias da TI Ibirama-Laklãnõ, fica mil metros acima do nível do mar. Natan usa essa condição geográfica para fazer uma comparação com os desafios de um Xokleng: “Só Deus para me empurrar para baixo”.Assim como Natan deseja que seu filho conheça a história de seus antepassados, a juventude Xokleng já se decidiu por um levante. Além da forte presença nas redes sociais, os jovens da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ assumiram o protagonismo da luta. Com danças, cantos, corpos pintados, rodas de conversa e protestos, eles têm levado o grito Xokleng a diferentes lugares. Já estiveram em protestos no Supremo Tribunal Federal, na Esplanada dos Ministérios, nas ruas de Florianópolis e na Assembleia Legislativa de Santa Catarina.“Todos os anciãos esperaram pela demarcação do nosso território de forma integral. Nós queremos honrar nossos avós, nossos antepassados, todos aqueles que faleceram sem poder ver esse momento histórico se concretizar”, conta Kagdan Crendo, 16 anos, comunicador no grupo da juventude. O estudante do ensino médio da aldeia Plipatõl admite que mal consegue dormir esperando pela decisão do STF: “O marco temporal uniu o nosso povo. Anciãos e jovens, católicos e evangélicos. A gente tem diferenças, mas neste momento nada é maior do que a questão da terra”.- Capa: Kagdan Crendo, 16 anos, comunicador da juventude Xokleng, afirma que todas as gerações de seu povo estão unidas na defesa do território. | Foto: Daniel Conzi, Sumaúma