Secretário de Atenção Primária, reflete sobre as mudanças que foram necessárias para resgatar o programa e os obstáculos impostos pelas gestões Temer-Bolsonaro. Para ele, trata-se de uma retomada da Atenção Básica como política prioritária do SUS
Felipe Proenço em entrevista a Gabriel Brito
O Mais Médicos está de volta, aprimorado – e como não poderia deixar de ser, é alvo de discussões e ataques acalorados. Mas é preciso colocar o verdadeiro debate nos eixos: compreender quais são as verdadeiras necessidades do país, o problema de má distribuição de profissionais e a formação dos médicos brasileiros. Para isso, o Outra Saúde ouviu alguém importante: Felipe Proenço foi ex-coordenador do programa em sua fase inicial, durante o governo Dilma, e hoje é secretário-adjunto da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do ministério da Saúde.
A versão bolsonarista do programa, o chamado Médicos pelo Brasil, foi incapaz de corrigir as falhas das gestões anteriores. Pelo contrário, conta Proenço, “à medida em que o programa foi descaracterizado, uma parcela importante da população voltou a um cenário de desassistência que foi só piorando ao longo dos últimos anos, tanto que 2022 foi o ano de maior desassistência em termos de programas de provimento”.
Não se trata de entrar em debates ideológicos acerca do programa que ficou conhecido por trazer ao Brasil os médicos cubanos. “Tanto que 19% dos profissionais que entraram no Médicos pelo Brasil já estavam no município em que atuaram e 28% saíram de um município de uma faixa mais vulnerável para uma faixa menos vulnerável”, lembra o secretário. Proenço reconhece os limites do Mais Médicos anterior, e essa percepção do ministério foi o que deu as bases às mudanças que começam a ser implementadas em 2023, em especial no que diz respeito aos dispositivos de progresso na carreira dos profissionais que aderirem ao programa.
Os brasileiros precisam de médicos e os médicos precisam de reconhecimento. Na versão inicial do Mais Médicos, essa equação ficava incompleta, uma vez que o trabalho no programa não estava vinculado a mecanismos como a titulação na especialidade de Família e Comunidade ou alguma forma de pós-graduação, necessidades muito presentes na carreira destes profissionais. “Ao agregar a questão da cobertura da licença maternidade, ao diversificar as ocasiões formativas para o mercado profissional, com aperfeiçoamento, estamos articulando políticas públicas de educação e de saúde para responder a uma necessidade social e fortalecer o nosso sistema público”, afirmou.
Além disso, a própria situação da capacidade nacional em prover médicos melhorou, uma vez que sua quantidade é maior em relação a dez anos atrás. No fim das contas, o fundamental é o direito à saúde e o fortalecimento do SUS, algo desmantelado pelos governos pós-golpe de 2016, que destruíram pilares essenciais da saúde e sua relação concreta com a população.
“Quando falamos numa retomada do Mais Médicos, falamos também de uma retomada da Atenção Primária em Saúde enquanto política prioritária no Sistema Único de Saúde e, dessa forma, da necessidade da sua expansão, assim como da necessidade da expansão da saúde bucal, que vem com uma cobertura congelada há muito tempo. Há ainda a necessidade de pensar a retomada de financiamento e, portanto, de valorização do cuidado multiprofissional através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família”, explicou, jogando o olhar para a valorização dos demais profissionais que fazem parte do sistema de saúde.
Leia a entrevista completa com Felipe Proenço.
O que você tem a comentar sobre o retorno do Mais Médicos? Qual a importância do programa no atual contexto socioeconômico brasileiro? Que impacto acredita que deve gerar na população?
O Mais Médicos já é criado com a perspectiva de se ter estratégias diversificadas para responder ao grave problema da falta de médicos e da má distribuição desses profissionais. O programa conseguiu durante um período responder fortemente a essa necessidade social, de ter uma Equipe de Saúde da Família (ESF) completa com todos os trabalhadores e o profissional médico. Em virtude disso, o Mais Médicos conseguiu prover o profissional em localidades que historicamente nunca tinham contado com tal oferta.
São vários municípios em que passamos a ter um profissional ao longo da semana, que nunca tinham contado com isso. Assim, o programa alcançou resultados muito significativos, conseguiu reduzir a mortalidade infantil, o número de internações hospitalares e garantir acesso à saúde para a população.
Portanto, à medida em que o programa foi descaracterizado, seja no seu âmbito formativo, a partir de 2016, seja no âmbito do provimento, já em 2019, quando tivemos a saída dos profissionais da cooperação em localidades, uma parcela importante da população voltou a um cenário de desassistência que foi só piorando ao longo dos últimos anos, tanto que 2022 foi o ano de maior desassistência em termos de programas de provimento.
O Mais Médicos chegou a ter 18.240 médicos e, ao final de 2022, somando com o Médicos pelo Brasil, os dois programas estavam com menos de 13 mil profissionais. É uma situação muito importante de desassistência e o contexto de pandemia piorou a situação do acompanhamento do cuidado com as pessoas. Certamente, houve agravos muito importante à população que durante um período teve acesso a atendimento médico e voltou a uma situação de desassistência.
O programa voltou com diversas alterações em relação à sua primeira versão, muitas delas focalizadas em favorecer o avanço na carreira dos médicos contratados. Por que isso foi feito e que vantagens teria a oferecer aos profissionais e ao SUS?
Buscamos incidir sobre tais situações na perspectiva de aumentar a vinculação dos médicos exatamente para alcançarmos um número importante de especialistas na atenção primária, a fim de contar com o médico de Família e Comunidade, assim como a gente conta e tem ações no sentido de ter enfermeiros, psicólogos, nutricionistas de Família e Comunidade.
São iniciativas fundamentais exatamente para se ter o chamado cuidado longitudinal com a população na retomada do programa, ao agregar um incentivo ao médico que fez Financiamento Estudantil durante a graduação.
Ao agregar a questão da cobertura da licença maternidade, ao diversificar as ocasiões formativas para o mercado profissional, com aperfeiçoamento, estamos articulando políticas públicas de educação e de saúde para responder a uma necessidade social e fortalecer o nosso sistema público de saúde
Como enxerga o debate ideológico em torno da questão, em razão da presença dos médicos cubanos em sua primeira versão e do regime político deste país? Mais especificamente, como enxerga posicionamentos críticos ao programa como dos conselhos de medicina e alguns indivíduos abertamente posicionados à direita ou extrema-direita?
O programa acabou tendo um alto grau de polêmica no seu lançamento em virtude do ingresso de médicos estrangeiros, o que não se justificava, porque olhando a experiência de outros países houve uma presença com exercício provisório de médicos em localidades de mais difícil provimento. Havia, sim, um questionamento à qualidade e à capacidade de comunicação dos profissionais, o que ao longo do tempo se provou não serem obstáculos, tanto que o programa obteve excelentes resultados. Em alguns anos de fato houve uma participação expressiva de médicos estrangeiros, o número de cubanos chegou a 70%, portanto, entendemos aquela exacerbação que houve num primeiro momento.
O programa teve sequência apesar de descaracterizado e podemos observar, por exemplo, que em 2021, no governo anterior, mais de 6 mil médicos formados no exterior tiveram seu registro provisório concedido, renovado ou mantido pelo ministério da Saúde.
Portanto, algumas temáticas que estão tentando trazer novamente agora, como por exemplo a necessidade de revalidação para o exercício profissional no país, devem ser avaliadas do ponto de vista histórico, tanto porque teve sequência dada no governo Bolsonaro como também porque este profissional de exercício provisório está condicionado a atuar numa localidade de difícil provimento. E essa é uma das estratégias do programa, motivo pelo qual o programa tem estratégias diversificadas e, assim, obteve resultados tão importantes ao longo dos anos.
Agora, esperamos uma adesão maior do médico brasileiro porque nesta retomada do programa há incentivos voltados especificamente para médicos brasileiros, a exemplo dos profissionais oriundos do FIES, que formou médicos no Brasil. Contamos com esse entendimento e esforço, que deve ser o principal de uma política pública: levar profissionais às áreas de mais difícil providência. Entendemos que os incentivos são bem importantes nesse sentido.
Ao mesmo tempo, o mecanismo previsto na lei 12.871 está intacto nesses quase dez anos. Ou seja, se as vagas não forem preenchidas por médicos formados no Brasil, serão ofertadas a médicos brasileiros formados no exterior; se tal grupo não preencher as vagas, elas serão oferecidas a médicos estrangeiros.
Entendemos que nesse contexto atual não vai ser necessário uma evolução significativa nessas etapas, exatamente porque o próprio Mais Médicos criou novos cursos de medicina, com um número maior de vagas no interior em relação às capitais e agora esses médicos podem ingressar no programa também.
É um momento de somar esforços para que possamos fortalecer o Sistema Único de Saúde e atender às necessidades sociais da população brasileira.
O que você comenta do Médicos pelo Brasil, programa criado por Bolsonaro?
Primeiro: o programa foi anunciado em 2019 e só veio a ser efetivado em 2022. Um tempo longo dentro de uma necessidade social importante, de provimento de profissionais.
Depois lançou editais, com uma forma de ingresso semelhante ao Mais Médicos, com vistas a selecionar profissional que está num programa de educação pelo trabalho e é bolsista. Mas não teve as mesmas estratégias que o Mais Médicos colocou em torno de garantir uma melhor distribuição dos profissionais. Tanto que 19% dos Médicos pelo Brasil já estavam no município em que atuaram pelo programa e 28% saíram de um município de uma faixa mais vulnerável para uma faixa menos vulnerável.
O Programa Médicos pelo Brasil segue sem nenhuma mudança nos dispositivos da MP publicada semana passada, mas precisamos reavaliá-lo do ponto de vista da distribuição de vagas, de onde estão esses profissionais e isso tem que ser a primeira preocupação de uma política pública.
Quais seriam os desafios mais importantes da atenção primária no atual momento? Como a secretaria que você ocupa pode ajudar nos objetivos iniciais declarados pela ministra Nísia Trindade?
Entendemos que a Atenção Primária em Saúde (APS) é uma estratégia fundamental para qualquer país, seja para ter resultados no sentido das pessoas viverem mais e melhor, terem seu direito à saúde garantido, como também em termos de equidade. E é nesse sentido que a gente tem uma preocupação com a necessidade de ampliar a cobertura da Estratégia de Saúde da Família, tendo como condicionante a presença de médicos na atenção primária. Quando temos 5 mil equipes sem profissional médico, fica difícil falar.
Portanto, quando falamos numa retomada do Mais Médicos, falamos também de uma retomada da Atenção Primária em Saúde enquanto política prioritária no Sistema Único de Saúde e, dessa forma, da necessidade da sua expansão, assim como da necessidade da expansão da saúde bucal, que vem com uma cobertura congelada há muito tempo. Há ainda a necessidade de pensar a retomada de financiamento e, portanto, de valorização do cuidado multiprofissional através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF).
São desafios colocados pelo grupo de transição para a nossa secretaria e que estão na agenda de discussão do governo. Entendemos ser possível ter respostas importantes já nos primeiros cem dias de governo e vamos seguir trabalhando arduamente para dar a resposta ao longo dessa gestão.
É importante retomar a perspectiva da Atenção Primária em Saúde com um papel relevante dentro do SUS, com a possibilidade de um cuidado longitudinal e escopo de práticas ampliadas junto à população, a fim de garantir o direito à saúde com a importância devida.
Adriano Massuda, que fez parte do grupo de transição, disse em entrevista recente que a questão do orçamento em saúde segue pendente. Apesar da recuperação do que se considera o mínimo para o governo funcionar, o sistema continua subfinanciado e novos embates neste sentido acontecerão. Como você analisa isso?
O orçamento de 2023 estava bastante defasado na questão da APS, exatamente porque tinha feito cortes tanto na área do Mais Médicos no governo anterior quanto na própria questão de seu financiamento. Felizmente, a PEC da transição recompôs o orçamento, somente por isso pudemos viabilizar a retomada do Mais Médicos e planejar uma expansão da Estratégia de Saúde da Família e da proteção primária à saúde. Seguimos no entendimento do quanto é necessário investir nesse processo. Contamos com uma sensibilidade muito grande do presidente Lula, da ministra Nísia na questão e, felizmente, com a recomposição da PEC da transição pudemos viabilizar algumas políticas públicas fundamentais.
- Capa: Agência Brasil
Fonte: Gabriel Brito, Outras Palavras